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Juizado de Menores é destaque no Jornal O Globo
Notícia publicada por Jornal O Globo em 20/07/2023 14:06

Juizado de Menores faz 100 anos com o desafio de conseguir um lar para 1.597 crianças no Rio

Hoje, há 2.690 pessoas interessadas na fila e 145 jovens aptos para a adoção

Por Roberta de Souza — Rio de Janeiro

 

 

Histórias de abandono. Documento da antiga Casa dos Expostos no Museu da Justiça: acervo doado no centenário do 1º Juizado de Menores do Brasil trata de crianças em abrigo desde o século XVIII

Histórias de abandono. Documento da antiga Casa dos Expostos no Museu da Justiça: acervo doado no centenário do 1º Juizado de Menores do Brasil trata de crianças em abrigo desde o século XVIII Hermes de Paula

 

Há cem anos, a legislação para a infância ganhava atenção especial do estado. Em 1923, foi criado o 1º Juizado de Menores do Brasil e da América Latina, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. E, desde o início a sua história, a 1ª Vara da Infância e da Juventude lida com processos de abandono. Já no segundo ano de funcionamento, 81% das movimentações estavam ligadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, muitas vivendo nas ruas, que necessitavam de abrigos e dependiam do juiz para isso.

Ao longo de um século de existência, houve inúmeras mudanças no campo jurídico e social, mas a realidade desses jovens continua sendo um desafio: há 1.597 crianças e adolescente abrigadas no estado do Rio. Alguns de forma provisória, aguardando a reestruturação familiar, outras à espera de adoção. Com um trabalho de destaque que envolve busca ativa de famílias para crianças que podem ser adotadas, a 1ª Vara conseguiu concluir 200 processos do tipo desde julho do ano passado. Hoje, há 2.690 pessoas interessadas na fila e 145 jovens aptos a um novo lar.

No passado, as crianças que não tinham mais famílias eram encaradas como um objeto de caridade ou como uma alternativa para quem não tinha herdeiros. A prática da adoção, que existia antes mesmo do Código Civil, tinha requisitos específicos que limitavam sua ampla utilização.

— Apesar dos avanços, sabemos que os desafios ainda são inúmeros dada a complexidade do tema e a responsabilidade que exige. Mas nosso esforço precisa da parceria de outros atores fundamentais: os poderes Executivo e Legislativo e, claro, a sociedade — analisa o presidente do TJRJ, desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, ao dizer que garantir o direito das crianças e adolescentes é um dever de toda a sociedade.

 

Abandonados na “roda”

Bem antes de todo o respaldo jurídico para esses menores existir, o Rio tinha apenas um abrigo formal para as crianças abandonadas. A primeira foi criada há 285 anos, na sede da Santa Casa de Misericórdia, no Centro. Ela tinha uma roda fixada em uma dependência próxima à portaria, junto à igreja, onde os pequenos eram colocados em um suporte cilíndrico que girava. Um sino era tocado para avisar que, naquele momento, alguém estava deixando ali uma criança para que a instituição cuidasse.

 

Roda. Cilindros onde crianças eram deixadas para serem cuidadas por instituição: reencontro com as famílias era raro — Foto: Hermes de Paula

Roda. Cilindros onde crianças eram deixadas para serem cuidadas por instituição: reencontro com as famílias era raro — Foto: Hermes de Paula

 

Esse método, que era utilizado na era medieval para entregar mensagens ou comida, foi uma alternativa criada para evitar o abandono de crianças em locais como bosques, lixos e portas de igreja, onde ficavam expostas ao frio, fome ou ataques de animais.

Ao contrário do que se pensa, nos anos em que a roda funcionou, ela não recebia apenas crianças “indesejadas”. Muitas eram colocadas lá com bilhetinhos que explicavam as razões do abandono, geralmente relacionado a dificuldades financeiras, e que prometiam o retorno. A Casa dos Expostos, que depois recebeu o nome de Fundação Romão Duarte, abrigou jovens durante três séculos e fechou as portas definitivamente no ano passado. No início desse mês, ela doou parte do seu acervo ao Museu da Justiça.

Entre os itens cedidos, há documentos e livros com informações sobre a entrada de crianças na instituição e a própria “roda dos expostos”. Nos livros de registros que foram para o museu, é possível encontrar detalhes minuciosos sobre objetos deixados com as crianças entregues na roda, assim como descrições da roupas que elas usavam e suas características físicas. Apesar do esforço em identificar os menores, os reencontros com os pais eram raros devido à alta mortalidade infantil, em que mais da metade morria até os três anos, como pontua a historiadora Mary Del Priore.

 

Filhos de escravizadas

Segundo ela, a crescente urbanização a partir do século XVIII e a promulgação do Ventre Livre, lei abolicionista que determinada que os filhos de escravizadas seriam considerados livres, foram alguns dos fatores que contribuíram para aumentar o número de crianças espalhadas pelas ruas do país. Isso porque, para fugir das obrigações estabelecidas no decreto, os senhores obrigavam mulheres por eles escravizadas a deixar os próprios filhos.

Em 1927 foi estabelecido o primeiro Código de Menores do Brasil. Nele, foi decretado o fim do sistema de rodas. Mas elas continuaram funcionando em diversas cidades do país. No Rio, por exemplo, a roda só foi abolida onze anos depois.

Em 1965, houve outro ponto importante no direito da infância: a lei 4.655, considerada um marco na evolução da adoção no Brasil. Ela estabeleceu as regras para a legitimação adotiva, cuja aplicação se direcionava aos casos de adoção de crianças com até sete anos, abandonadas pelos pais biológicos. Porém, como explica a professora de Direito da FGV Rio Elisa Cruz, o ponto de virada mais significante nessa história é a Constituição Federal de 1988:

— Até 1988, a adoção era vista como uma forma de caridade, muito carregada no sentido religioso, ou como uma alternativa de quem não tinha herdeiros para deixar o patrimônio. Foi só com a Constituição que a sociedade passou a ter um olhar protetivo para a criança, e a adoção passou a ser considerada uma forma de proporcionar uma família para ela — conta a professora, dizendo que a Constituição também foi responsável por proibir a discriminação entre os filhos de qualquer origem.

Coordenadora do setor de Psicologia do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Érika Piedade coloca a convivência familiar como um dos processos mais importantes de conhecimento de mundo e diz que, no fundo, todas as crianças precisam ser adotadas, seja por sua família biológica ou não.

— Todo filho precisa ser adotado emocionalmente Se ele não é adotado pela própria família, ele acaba sendo filho de algum outro parente ou de uma pessoa próxima que o acolhe afetivamente — diz Érika.

Carlos Renato Barbosa, começou o processo para adotar sentimentalmente e financeiramente uma criança aos 44 anos. O gerente de projetos descobriu a possibilidade de adoção monoparental por meio de um amigo, e viu nessa possibilidade a chance de realizar o sonho de ser pai.

— Eu sempre quis ser pai, mas não sabia da possibilidade de adotar uma criança sendo solteiro — conta ele, que entrou na fila imaginando um filho entre seis e sete anos de idade.

Durante o processo, que durou dois anos, ele conheceu Christofer, que tinha 12. E mudou radicalmente de ideia. Isso foi em 2012. Carlos Renato recorda:

— Era triste ter que visitar meu filho no abrigo e não poder levá-lo para casa. Foi uma época dolorosa — conta ele, que hoje vê orgulhoso o filho, aos 22 anos, seguir seus passos na arte do desenho. — Meu filho é muito talentoso.

 

Os Números:

1.597 crianças e adolescentes em abrigos

O total hoje no estado, sendo que algumas estão de forma temporária e outras à espera de adoção

2.690 pessoas interessadas em adotar

Número hoje na fila do Rio de Janeiro, que tem 145 jovens aptos a uma nova família

 

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